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terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O Entrudo em tempos idos


Hoje é terça-feira de Carnaval. O dia está chuvoso e por isso, dizem os velhos, a Páscoa será soalheira: "Entrudo borralheiro, Páscoa soalheira" e vice-versa. E como "ditados de velhos são evangelhos", é tido como certo que o sol brilhará durante a visita pascal.
Antigamente neste dia de Carnaval, ou Entrudo, havia muitos "caretos" a passear pelos caminhos da nossa terra. Não havia lojas de chineses para se comprarem fatos nem era costume alugarem-se, cada um ajeitava-se com o que havia na caixa da avó ou das tias.
Saias velhas, camisas largas, botas grandes, tudo servia para se esconderem as formas do corpo. Na cabeça enfiava-se um pano com buracos para os olhos e a boca. E usava-se um pau para caminhar, tentando mudar o andar costumeiro. Toda a gente mancava, no Carnaval...
Se fosse preciso falar também se mudava o tom de voz. E se alguém oferecesse uma bebida aos caretos, para tentar que eles se destapassem, era quase certo ficar na mesma porque eles, ou recusavam, ou traziam consigo uma palhinha e por ela bebiam.
Era uma tarde divertida. Logo ao fim do almoço começavam a aparecer os caretos e era até ao anoitecer. Alguns eram brutos e usavam o pau para assustar as crianças, outros usavam o pau como defesa se alguém lhes tentasse arrancar a máscara (careta).
Ainda mais antigamente, no tempo dos nossos avós, era costume na noite de Entrudo os homens, disfarçando a voz, apregoarem coisas que era suposto ser segredo. Se alguém namorasse às escondidas podia ter a certeza que chegando este dia toda a gente ia ficar a saber.
Havia quem o dissesse em verso, com perfeitas quadras ao jeito popular, algumas adaptadas de outras muito conhecidas na altura. A Maria do Maravilha, uma senhora que mora comigo, contou-me algumas que a mãe e as tias lhe ensinaram:

Loureiro pega de estaca
amieiro de raíz
aqui nesta função
entra o Zé do de Assis.

O visado tinha feito alguma, de certeza...

Ó Julinha do Maravilha
a folha da vinha cai
eu quero que me tu digas
pra onde está o teu pai.

Ó Julinha do Maravilha
olha prà Estrela do Norte
tu querias o Monteverde
mas ele usa capote.

A Júlia do Maravilha era uma moça a quem o Monteverde pretendia namorar, mas o pai dela não consentia por ele ser muito rico, temia que fosse para abusar dela. A referência ao capote quer dizer precisamente isso, que ele era muito rico, pois só esses tinham dinheiro para comprar um.
Essa moça faleceu antes dos vinte anos, com a pneumónica, ou gripe espanhola. Foi uma epidemia de gripe que apareceu logo após a guerra de 1914-1918 (1ª Guerra Mundial).

E outra:

Ó tio Manel da Gajeira
quem quer comprar vai à feira
o falar sem considerar
é cair em grande asneira.

Provavelmente esse senhor tinha falado demais...
O costume de os homens se mascararem e falarem "demudado" também se usava nas desfolhadas.

No Entrudo, também chamado Terça-feira Gorda, era costume, e ainda é em muitas casas, comer cozido e filhoses. As filhoses eram feitas com o mesmo tipo de massa  com que atualmente se fazem os crepes, a diferença era a consistência: havia quem gostasse delas mais grossas e não eram recheadas, polvilhavam-se com açúcar e canela.
A minha mãe gostava das filhoses feitas com farinha de cevada em vez da de trigo, mas já não se encontra dessa farinha à venda nos supermercados.
Era um dia de bem comer, quem tivesse posses para isso, contrastando com a Quaresma, que se inicia logo no dia seguinte e em que se jejuava mais vezes do que agora.
E termino com um dito que a minha avó tinha para esses dias:

Santo Entrudo, já me eu vou
quem muito comeu, com pouco ficou.

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